Classe e Raça
A classe dominante [brasileira]
bifurcou sua conduta em dois estilos contrapostos. Um, presidido pela mais viva
cordialidade nas relações com seus pares; outro, remarcado pelo descaso no
trato com os que lhe são socialmente inferiores. Assim é que a mesma pessoa
pode-se observar a representação de dois papéis, conforme encarne a etiqueta
prescrita do anfitrião hospitaleiro, gentil e generoso diante de um visitante,
ou o papel senhorial, em face de um subordinado. Ambos vividos com uma
espontaneidade que só se explica pela conformação bipartida da personalidade.
A essa corrupção senhorial
corresponde uma deterioração da dignidade pessoal das camadas mais humildes,
condicionadas a um tratamento gritantemente assimétrico, predispostas a assumir
atitudes de subserviência, compelidas a se deixarem explorar até a exaustão.
São mais castas que classes, pela imutabilidade de sua condição social.
[...] Dentro desse contexto
social jamais se puderam desenvolver instituições democráticas com base em
formas locais de autogoverno. As instituições republicanas, adotadas
formalmente no Brasil para justificar novas formas de exercício de poder pela
classe dominante, tiveram sempre como seus agentes junto ao povo a própria
camada proprietária. No mundo rural, a mudança de regime jamais afetou o
senhorio fazendeiro que, dirigindo a seu talanto as funções de repressão
policial, as instituições da propriedade na Colônia, no Império e na República,
exerceu desde sempre o poderio hegemônico.
A sociedade resultante tem
imcompatibilidades insanáveis. Dentre elas, a incapacidade de assegurar um
padrão de vida, mesmo modestamente satisfatório, para a maioria da população
nacional; a inaptidão para criar uma cidadania livre e, em conseqüência, a
inviabilidade de instituir-se uma vida democrática. Nessas condições, a eleição
é uma grande farsa em que massas de eleitores vendem seus votos àqueles que
seriam seus adversários naturais. Por tudo isso é que ela se caracteriza como
uma organização oligárquica que só se pode manter artificiosa ou
repressivamente pela compressão das forças majoritárias às quais condena atraso
e à pobreza.
Não é por acaso, pois, que o
Brasil passa de colônia a nação independente e de Monarquia a República, sem
que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba. Todas as nossas
instituições políticas constituem superfetações de um poder efetivo que se
mantém intocado: o poderio do patronado fazendeiro.
[...] A distância social mais
espantosa do Brasil é a que separa e opõe, os pobres dos ricos. A ela se soma,
porém, a discriminação que pesa sobre
negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros.
Entretanto, a rebeldia negra é
muito menor e menos agressiva do que deveria ser. Não foi assim no passado. As
lutas mais longas e mais cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência
indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os
séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou
com a abolição.
Sua forma era principalmente a de
fuga, para a resistência e para a reconstituição de sua vida em liberdade nas
comunidades solidárias dos quilombos, que se multiplicaram aos milhares.
[...] As atuais classes
dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de
escravos, guardam, diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. Para seus
pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, eram mera força energética,
como um saco de carvão, que desgastado era substituído facilmente por outro que
se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o mulato e o branco pobre
são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela
criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como
culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça e
não como resultado da escravidão e da opressão. Essa visão deformada é
assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguem ascender
socialmente, os quais se somam ao contingente branco para discriminar o
negro-massa.
[...] Nos últimos anos, por
efeito do sucesso do negro americano, que foi tido pelos brasileiros como uma
vitória da raça, mas principalmente pela ascensão de uma parcela da população de
cor, através da educação e da ampliação das oportunidades de emprego, o negro
brasileiro vem tomando coragem de assumir orgulhosamente sua condição de negro.
O mesmo ocorreu a muitos mulatos
que saltaram para o lado negro de sua dupla natureza. Essa passagem, de fato,
era muito difícil, em razão da imensa massa negra, afundada na miséria mais
atroz, com que não podia se confundir. Massa que compõe a imagem popular do
negro, cuja condição é absolutamente indesejável, porque sobre ela recai, com
toda dureza, o pauperismo, as enfermidades, a criminalidade e a violência.
Isso ocorre numa sociedade
doentia, de consciência deformada, em que o negro é considerado culpado de sua
penúria.
RIBEIRO, Darcy. O
povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das
letras, 1995. p.217-224.
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